terça-feira, 21 de julho de 2009

Salmo 23, versículo 4


"Certa vez ouvi falar que foi feita uma pesquisa na qual era perguntado para as pessoas se gostariam de saber o dia de sua morte, segundo a pesquisa 96% dos entrevistados disse que não. Eu também não gostaria de saber. Não gostaria de ter sabido."

Ainda era cedo da noite, era uma quarta-feira cinzenta, uma daquelas onde não se tem nada para fazer. Rodrigo saiu de casa sem rumo, sem idéias, apenas vazio. Caminhou pelas ruas de seu bairro, caminhou pelas ruas do bairro vizinho, pegou o metro, foi ao centro. A noite perecia infinita. Rodrigo entrou em todo o tipo de lojas que encontrou pelo caminho, gastou um pouco do seu dinheiro mofado. No celular de Rodrigo eram 23:42, tudo estava fechando, o fluxo de pessoas parecia cada vez menor. Decidiu pegar um taxi e voltar para casa. No fim da rua por onde passava ele pode avistar algumas luzes bastante coloridas, curioso decidiu averiguar, ao se aproximar foi possível notar que era um velho parque de diversões. As lonas do parque já eram encardidas de tão velhas, a maioria dos brinquedos tinha a pintura descascada, o movimento já ia fraco. Rodrigo comprou uma maçã do amor, deu uma volta no navio pirata, outra no chapéu mexicano, então decidiu que já era hora de voltar para casa. Próxima a saída Rodrigo notou uma tenda que parecia não estar lá quando ele chegou, ou talvez simplesmente só não a tenha notado, a tenda tinha em sua frente uma faixa já antiga escrita “Madame Mollo”. Em um outro dia qualquer Rodrigo teria passado e não sentiria a mínima curiosidade de saber do que se tratava, mas nesse dia não, as coisas andavam estranhas. Ao entrar na tenda Rodrigo sentiu uma estranha sensação de Dejá vù, era como se já houvesse estada naquele lugar em um dos seus sonhos. No interior da tenda havia um pequeno átrio que era separado da parte conseguinte apenas por uma cortina de conchas, no átrio havia duas velhas cadeiras de madeira, na segunda parte da tenda havia apenas uma mesa redonda, coberta por uma toalha de crochê, havia duas cadeiras ao redor da mesa, uma mais próxima da entrada, dando a entender que seria do cliente, a outra estava mais ao fundo da tenda, nessa estava sentada uma senhora, aparentava ter cerca de cinqüenta anos, de cabelos pretos, roupas espalhafatosas, ostentava um olhar sinistro que causaria arrepios em qualquer demônio.
-Boa noite, meu filho! Disse a senhora.
-Boa noite. Você é a madame Mollo?
-Sim. Veio ver seu futuro, não?
-Eu.. não sei. Você é algum tipo de vidente? Né?
-Sim. Sou algum tipo.
-Então tá. Que mal teria, né?
Rodrigo assentou-se. Madame Mollo tocou-lhe as mãos e fechou os olhos, como se estivesse entrando em algum tipo de transe. O rosto de madame Mollo começou a mudar, sua face expressava uma dor excruciante, sua boca murmurava algumas palavras ininteligíveis. De repente seus olhos se arregalaram, ela ficou boquiaberta, começou a soluçar e disse.
-Você...você...quero dizer...
-O quê a senhora viu?? Disse um pouco assustado.
-Eu..eu...nada...você terá uma vida feliz e prospera. É só.
-Quê? Só isso? Mas...
-Meu filho se você puder me deixar agora, eu estou cansada e...
-Como assim?
-Essa consulta fica por conta da casa ok?
-Não. Eu quero saber o que foi que a senhora viu. Eu pago. Quanto a senhora quer? 100? 200? Está aqui. Agora fale.

Madame Mollo ficou calada por alguns segundos.

-Certo...Eu vi a sua morte.


-Bem meu nome é Pedro Noleto de Bezerra, tenho 37 anos, sou odontólogo, solteiro, moro sozinho, gosto de pintar, faço pintura á óleo. Bem, eu sou meio tímido, mas sempre tive um bom convívio com todo mundo.

São 8:23 da manhã, pelo menos é isso que diz o rádio-relógio que está na cabeceira da cama de Pedro. Os olhos de Pedro se abrem para o teto, sua cabeça dói, a noite foi péssima, dormira apenas vinte ou trinta minutos essa noite. A insônia o manteve pensativo. Realmente não é muito animador ouvir alguém lhe dizer como e quando você vai morrer, pior ainda quando essa pessoa diz que acontecerá dentro de 23 horas. Na cabeça de Pedro ecoavam as palavras de Madame Mollo, a única coisa em que ele pensava era em como poderia se esquivar do destino. Na noite passada enquanto passeava pelo parque Pedro cometeu o ingênuo erro de dar suas mãos para serem lidas. Agora sua cabeça agita em pensar que sua morte está tão próxima. Pedro levanta tremulo, vai ao banheiro, é cauteloso em tudo que faz, escova os dentes, acha melhor não o tomar banho, tentar comer, mas a comida não desce. Pedro fica duas ou três horas sentado no sofá, pensando em tudo que fizera na vida, mas o que mais lhe rói o coração é a lembrança de tudo que não fizera. Todas as aventuras que perdeu, todas as loucuras que deixou escapar, todos os amores que nunca viveu. Os vasos sanguíneos do cérebro de Pedro se dilatam, ele tem uma idéia: “Já que irei morrer. Que se dane a sensatez”. Pedro se levanta, vai até o guarda-roupa, veste seu melhor terno, sua melhor camisa, sua melhor gravata, calça seus melhores sapatos. Sai de casa, acha melhor ir a pé, vai ao banco, faz um “limpa” em sua conta. “E agora que loucura farei?”. Então Pedro lembra-se dos tempos de faculdade, quando todos os alunos se esbaldavam em boates de stripers. Pedro acena para o primeiro taxi, entra, senta-se e tímido pergunta: “É... o senhor conhece alguma... alguma daquelas boates de stripers?”. A fachada da boate é bem singela, não passa de um prédio com tijolos expostos, as enormes janelas são de vidro espelhado impossibilitando que se veja o que acontece no interior. Ao entrar Pedro se depara com o paraíso, mulheres semi-nuas andando para lá e para cá o tempo todo. Ele caminha até uma das mesas, e assiste a mais bela apresentação de dança que já viu. Ele gasta tempo e dinheiro. Ele vê todas as stripers bem de perto, ele enfia dinheiro em suas calcinhas e sutiãs como se vê nos filmes de Hollywood. Ele recebe danças particulares. Ele se sente Salomão com suas mil concubinas. O dia se vai. Pedro nota que algumas dançarinas se retiram dos pequenos palcos dando lugar a outras, parecem estar indo embora. Os vasos sanguíneos do cérebro de Pedro se dilatam. Pedro tem outra idéia. Apressa-se e sai da boate, dá a volta no prédio e espera que alguma dançarina saia. Não demora muito ele vê três delas saindo, ele se aproxima e diz: “É... com licença garotas, é... eu gostaria de saber se vocês... topariam fazer uma espécie de apresentação... particular?”. Uma delas responde:”Seu porco! Acha que somos o que? Putas? Vai tomar no seu cú.”. Mas outra interrompe: “Quanto você paga?”. Pedro pergunta: “Quanto você cobra?”. “Pra ter isso aqui meu querido... dois mil. Á vista.”. Pedro: “Eu pago!”. Dali saem, pegam um taxi e vão para um motel. Pedro nunca tivera uma mulher daquele jeito. Ele fez tanta sujeira. Se lambuzou a noite inteira; até ficar saciado. Depois de um dia como esse Pedro não se importa mais com a morte, ele decidiu caminhar até chagar em casa, não se importa se for assaltado, não se importa se for baleado, encara feio todos os tipos estranhos que aparecem em seu caminho. Pedro atravessa as ruas sem olhar para os lados. Ele estufa o peito como se fosse Sean Connery . Pedro vê sua casa. Pedro pensa “Vidente estúpida”. Mas enquanto Pedro atravessa a rua ouvi alguém lhe gritar: “Blá blá blá!”, Pedro nunca teve os ouvidos bons. Pedro olha para trás, era a vizinha, Dona Rita. Pedro pergunta : ”Hã??”. Pedro não vê o caminhão de lixo. O motorista do caminhão de lixo não vê Pedro. Dona Rita vê o caminhão e grita: “Cuidado... com o caminhão meu filho!”. Pedro se vira e pergunta “Hã??”. Se ela não tivesse dito nada. Se ele não houvesse parado. Se o motorista não estivesse distraído vendo um vídeo pornô em seu novo celular. E se...
Enquanto Pedro agoniza no asfalto, enquanto seu sangue se espalha para todos os lados, enquanto os vizinhos gritam, enquanto o ar lhe falta, enquanto o céu escurece. Pedro apenas se lembra das palavras de Madame Mollo...

Rodrigo acordou com o despertar do celular, eram 8:23 da manhã. Não importava que horas eram, para Rodrigo só importava o lhe aconteceu na ultima noite. Ele estava fixado nas palavras de Madame Mollo. Rodrigo não se importou em levantar. O dia nasceu mórbido, nebuloso. Rodrigo sentou-se a beira cama e pensou : ”Droga!”.

-Meu nome é Joham Kinsky, tenho 49 anos, sou militar aposentado, divorciado, não tenho filhos, não gosto de animais, gosto de jogar sinuca, baralho e beber um bom whisky. Não sou o tipo com muitos amigos.

O dia começa cedo para Joham, são 4:08 e ele já está de pé, velhos costumes militares; as neuroses causadas pelos abusos no exército tornaram Joham paranóico e com um sono extremamente leve. Logo ao levantar lembra-se da noite passada : “Videntes...”. Joham nunca foi o tipo supersticioso. Ele só acredita na “Poderosa”; a “Poderosa” é uma Magnum calibre 45 que ele carrega consigo. Joham assiste TV, come bacon, fica entediado; como sempre. Joham espera o dia amanhecer; como quem aquece a água sem deixar ferver. Com o sol já alto ele sai para caminhar. Ele mora num bairro meia boca. As casas são feias e velhas. A vizinhança é pobre. Existem muitos animais e mendigos largados nas ruas. Mas o que mais irrita Joham são os jovens. Não todos os jovens; só os traficantes. Mas o que mais irrita Joham não é o fato de serem traficantes; é o faro de serem traficantes negros. Joham sempre admitiu ser racista, isso inclusive lhe causou sérios problemas no exército. Após sua caminhada matinal ele volta para casa, ao chegar á porta é abordado por um de seus vizinhos que diz: “Joham. Você ficou sabendo o que fizeram como o filho do Mauro? Os traficantes, aqueles desgraçados desossaram ele. Desgraçados”. Joham finge não se importar, dá de ombros e entra. Mas ele pensa: “Esse desgraçados já estragaram demais esse bairro. Eu não tenho filhos porque não gosto de crianças mas...”. Ainda eram 8:23 da manhã quando Joham começou a beber. Uma dose após a outra. De repente o estrondo dos canhões inimigos, granadas, helicópteros começam a atormentar os sentidos de Joham. Grandes doses de álcool sempre provocaram-lhe alucinações. Grandes doses de álcool sempre o deixam violento. Ele começa a quebrar as coisas. Jogar as louças nas paredes. Encharca toda a mobília com whisky. “Vou acabar com todos aqueles desgraçados”. Ele põe a “Poderosa” na cintura. Louco como um búfalo, procura em todos os becos, até encontrar. Ele vê um pivete vendendo drogas numa esquina. Ela se aproxima devagar e pega o muleque no sustos. O garoto deve ter por volta de doze anos, negro com dreadlocks. Joham o levanta pelos cabelos. Enfia a arma em sua boca e diz : ”Você me levará até o seu “quartel general”. São 23:42 da noite, Joham chega em casa banhado de sangue, cheio de cortes pelo corpo, mas com um enorme sorriso estampado no rosto. A única coisa que passa pela sua cabeça agora é : “Acho que hoje eu fiz uma bagunça e tanto. Hehe. A polícia vai ter um monte de pedaçinhos pra juntar”. Realmente oito corpos estraçalhados em quatro casa diferentes não é uma bagunça agradável para se limpar. Joham está contente, fez o seu papel de cidadão; limpando as ruas daqueles malfeitores. Joham abre uma garrafa de whisky, acende um cigarro e deita no sofá. Joham se esquece que antes de sair e dar uma de justiceiro ele havia feito também uma bagunça em casa. Joham se esquece qual é o produto de álcool+fogo.
As labaredas do cigarro caem sobre o sofá coberto de álcool, iniciando o incêndio, que se espalha pelas cortinas, paredes, mobília e equipamentos elétricos. Joham só percebe o fogo quando sente um cheiro de carne queimada no ar; o cheiro de sua própria carne. Joham arde em chamas. Ele sabe que aquele será o fim. Ele tem um ataque de risos. Joham apenas se lembra das palavras de Madame Mollo...

Rodrigo estava parado em frente a TV, a umas duas ou três horas; tinha medo de sair e ser atropelado, assaltado, ou sabe-se lá o que poderia acontecer. Rodrigo havia lido no jornal matinal sobre a morte de um cidadão na porta de sua própria casa; atropelado por um caminhão de lixo, o motorista foi indiciado por homicídio culposo. É claro que assistir TV não é o melhor remédio para quem já está apavorado. O jornal da TV noticiou a morte de um homem de cinqüenta anos em sua própria casa, vítima de um acidente doméstico, aparentemente o tal homem bebeu demais e causou um incêndio que tomou toda a residência e deu cabo de sua vida. Rodrigo estava apavorado, sua pressão ia aos céus e caia. “Se ficar o bicho pega, se correr o bicho come”.

Olá. Meu nome é Fabrício. Tenho vinte e quatro anos. Sou solteiro. Inclusive estou a procura. Hehe. Bem meus hobbies... gosto de jogar vôlei de praia, na verdade eu só vou pra ver as garotas de biquíni. Bem... também gosto de dançar. Me dou muito bem com as pessoas, todo mundo sem exceção.

O dia já vai alto e Fabrício ainda dorme. Fabrício sempre foi um “boa vida”, namorador, sustentado pelos pais e etc. Ele vive num apartamento de classe média; que também é bancado pelos pais. Parece que ele vai dormir até amanhã. Parece que a noite foi boa. Ele provavelmente nem se lembra com quantas garotas transou na noite passada. Ele provavelmente nem se lembra o que Madame Mollo lhe disse na noite passada. Mas o destino é sujo e sorrateiro, ele não deixa barato, ele sempre dá uma jeito de nos lembrar quem é que manda nesse “cabaré”. Fabrício está tendo sonhos eróticos com alguma peituda. No sonho uma mulher vem andando por um longo corredor, algumas luzes vermelhas decoram o lugar, ela está vestida num tipo de roupa árabe, ou indiana, algo não muito bem definido. Ela vem devagar, seu corpo se mexe num ritmo estranhamente excitante. Suas formas, seus olhos e seus olhares, seus dentes e seu sorriso. Ela devora o juízo de Fabrício. As roupas de ambos somem. Eles estão numa praia. Ela se apóia sobre as coxas de Fabrício enquanto se ajoelha. Ela pergunta “Como vai garotão? Que tal um boquete?”. O presidente Kenndy pergunta “Como vai garotão? Que tal um boquete?”. A falecida avó de Fabrício pergunta “Como vai garotão? Que tal um boquete?”. Madame Mollo pergunta “Como vai garotão? Que tal um boquete?”. Fabrício acorda apavorado. “Droga de sonho!”. Agora Fabrício se lembra de Madame Mollo e do que ela lhe disse. Fabríco não acredita nesse tipo de coisa, ele só entrou na tenda dela porque estava muito “chapado” e nem sabia o que estava fazendo. Fabrício se levanta. Já são 15:16. A fome aperta. Fabrício não é o tipo convencional, quem se importaria em comer se soubesse que existe um possível risco eminente de morte? Fabrício pega telefone para pedir algo para comer, a linha está muda. Ele tenta ligar a TV, está sem energia. Ele decide ir ao vizinho verificar se estão na mesma situação, a porta de seu apartamento está trancada, ele não acha as chaves. “Mas que porra ta acontecendo?”. Fabrício começa a se preocupar com situação. Ele vai a janela olha para os lados, aparentemente tudo vai normal na rua. Ela decide se arriscar e andar pelo parapeito do prédio na tentativa de chegar ao apartamento vizinho e pedir ajuda. O parapeito está molhado. Ele caminha com cautela. Ao chegar á janela vizinha ele bate e diz: “Ô de casa. Alguém ai?”. Fabrício não cauculou bem em que janela estava batendo, infelizmente era a janela do banheiro. A vizinha assustada deu-lhe uma vassourada, Fabrício ficou pendurado no parapeito. Nesse momento ele se lembrou das palavras de Madame Mollo. Foi então quando a enorme e gorda mão do Sr° Marcelo o puxou para dentro salvando sua vida. Sentado na mesa da cozinha Fabrício pensava na forma miraculosa como escapou da morte. Pensava “É... acho que é hora de mudar de vida!”. Estranhamente as coisas voltaram a funcionar, o telefone voltou a pulsar, a energia voltou, até a chave ele encontrou; dentro do tênis que havia usado na noite anterior. A fome veio novamente. Na geladeira de há apenas essas besteiras que os jovens comem, doces, salgadinhos, refrigerante, cerveja. A única coisa que quase poderia se equiparar a uma refeição é um sanduíche velho, já deve ter uma semana que ele está ali no canto, mas sua cara não é das piores, a alface escureceu um pouco, o tomate está um pouco murcho, mas a carne ainda parece saudável, além do que não fede. “Um minuto no micro-ondas resolve”. Pensa Fabrício. Após um minuto no micro-ondas lá está ele, o sanduíche, cheiroso e suculento como novo. Fabrício abocanha com ganância, o stress que passou só aumentou sua fome. Mordida após mordida o sanduíche vai se tornando menor. Fabrício se lembra do que sua mãe dizia : “meu filho comer rápido faz mal!”.
Certa vez eu vi em um comercial que “perigoso é ervilha”. Fabrício pode comprovar isso. Em uma das mordidas afoitas Fabrício se engasga com uma reles ervilha. Uma reles ervilha teimosa que se agarra a garganta de Fabrício e o começa a sufocar. Fabrício primeiro tosse algumas vezes para tentar expeli-la, mas ela é bastante teimosa e não se entrega tão fácil. Fabrício inflige alguns socos contra o peito. Fabrício começa a se preocupar. Fabrício toma um copo d’água. Nada. Fabrício se entrega ao desespero. O seu cérebro não está mais oxigenando. Ele fica tonto. Ele cai e começar a engatinhar. Ele começa a rastejar. Ele começa a se debater. Ele começar a tremer. Ele começa a agonizar. Nesse momento Fabrício se lembra apenas das palavras de Madame Mollo...

Rodrigo decide não sair de casa. Com certeza o exterior é bem mais perigoso que o aconchego de sua residência. São 15:16. Rodrigo mata o tempo jogando “Paciência”. Alguém bate a porta. Rodrigo olha através do olho mágico, é sua noiva. “Rodrigo! Abre a porta! Rodrigo você ta ai?”. “Sim amor. Eu to aqui. Mas eu num posso abrir não”. “Mas que diabos deu em você, ta deixando todo mundo preocupado contigo. Você num foi trabalhar, num ligo pra ninguém, num ligou pra mim. E por que eu num posso entrar?!”. “Olha amor é complicado. Confia em mim!”.”Você ta com alguma piranha ai né? Seu sem vergonha!”. “Não amor num é isso. É sério eu num posso abrir. Depois te ligo. Tá? Tchau! Te amo.”

Meu nome é George Carvalho Rezende. Tenho sessenta e sete anos. Sou casado. Tenho três filhos e cinco netos. Gosto de jogar dominó. Canto no coral da terceira idade na minha capela. Sou tenor. Sou o tipo bem afetivo. A vizinhança gosta muito de mim.

O dia nasce cedo para George, com a idade vem essas indisposições que não deixam as pessoas de mais idade dormirem direito. George sofre de um problema na próstata. Foi constatado um câncer á pouco tempo. George viaja até a cidade vizinha pelo menos uma vez ao mês para as sessões de quimioterapia. Isso deixa George muito deprimido, mas ele não deixa que isso tire sua alegria e bom humor. Ele se levanta, diz a esposa que a ama. Faz a barba, escova os dentes e toma uma ducha. Toma seu café com pão. Lê seu jornal. Espera o almoço. Almoça. Vai jogar dominó com os amigos. Vai ao coral. Vai á missa. Volta para casa. Vai dormir. Todos dias são tão iguais. Como diz aquela garota “beatinik” “Viver é chato e bonito”. Faz trinta e sete anos que George se levanta e diz á mulher que a ama. Ás vezes ele se pergunta “Por que eu ainda insisto em dizer isso? Afinal ela só responde um “eu também” se co e mecânico!”. Mas ele não deixa morrer o sorriso que carrega na face. Desde os dezessete ele faz a barba todos os dias, papai sempre lhe dizia que cara barbada é coisa de vagabundo. Mesmo assim nunca deixou morrer o sorriso. Até o café com pão já se tornou enfadonho, por que não bacon, ovos, sorvete, refrigerante? O jornal, o jornal é sempre tão igual, morre um atropelado aqui, um incêndio ali, as vezes vê-se algumas noticias deveras interessantes como por exemplo uma que está tirando algumas risadas malignas de George: “Jovem morre engasgado com ervilha”. Talvez George devesse parar de ler esses tablóides sensacionalistas. Enquanto espera o almoço George fica na varanda. O almoço é sempre o mesmo; sua mulher cozinha maravilhosamente, mas trinta e sete anos “cavucando a mesma cumbuca” é entediante para qualquer um. Hoje George não vai jogar dominó, nem irá ao coral. Hoje George irá até a capital para fazer mais uma sessão de quimioterapia. No ônibus a vida chata passa pela cabeça de George, ele fica martelando tudo o que abdicou. Na noite passada George foi á um parque da cidade, entrou na tende de uma vidente, lembrar disso causa-lhe uma crise de risos porque a mesma o disse que ele morreria. A morte já não é mais tão assustadora para George, ele convive com ela todos os dias, morrer não seria uma surpresa, nem para ele nem para ninguém que o conheça. As sessões de quimio são sempre muito doloridas, George deseja morrer a ter que passar por isso novamente. É sempre tudo tão igual. Ao sair do consultório George para e fica, ali estagnado no meio do corredor do hospital. George fica ali, apenas ali. George olha para a janela, sai correndo, todos ficam achando estranho aquele senhor correndo no meio do hospital. George lança-se pela janela.
O vento no rosto de George o faz lembrar a vez que foi ao Beto carreiro World e deu uma volta na montanha russa. A luz do sol o faz lembra aquela cena final daquele filme do qual ele não lembra o nome nesse momento. A velocidade o faz lembra que ele não verá a final do campeonato mundial de fórmula 1. A vida. Esse momento de liberdade não tem preço. Voar. Voar. Cair. Cair. O chão. Agora vem a mente de George as palavras de Madame Mollo...

Rodrigo passou o dia todo dentro de sua casa, escondido embaixo dos edredons. Até então não houvera a mínima ameaça de morte, mas todo cuidado era pouco. Afinal Madame Mollo foi bem convincente. Rodrigo não comeu. Rodrigo não bebeu. Rodrigo nem se quer saiu na porta. Ele dispensou sua noiva. Faltou ao serviço. Toda a sua vida passou-lhe diante dos olhos. Tudo que fizera e não fizera. A sorte que tivera e que lhe faltara. As amizades, família, escolhas. O amor. As crenças. Doenças. Agora tudo parecia ter um valor incomensurável. Talvez tudo não valesse nada. Talvez.
Rodrigo se levantou. Foi até o espelho, gastou algum tempo olhando sua deplorável imagem pálida. Abriu a carteira, rasgou o seu dinheiro podre. Finalmente saiu de casa. O por do sol o deixou levemente emocionado. As crianças voltando da escola o deixaram levemente emocionado. Até o cachorro sarnento que mora nas ruas se coçando mexeu com seu coração. Rodrigo não pôde suportar essa dor dilacerante. Em um ato de puro desespero Rodrigo correu pela rua como se estivesse endemonhinhado. O pânico fez com que ele pensasse em apenas uma coisa. A morte. Ele viu ao longe o ônibus que faz a rota em sua quadra. O pânico fez com que ele pense em apenas uma coisa. A morte. O ônibus se aproximava. O pânico fez com que ele pense em apenas uma coisa. A morte. Ele se jogou na frente do ônibus. O pânico fez com que ele pense em apenas uma coisa. A morte.
Rodrigo abriu os olhos. Vida. O ônibus freou. Vida. Rodrigo suspirou. Vida. Nesse momento as primeiras coisas que vieram a mente de Rodrigo foram as palavras de Madame Mollo...


Pedro apenas se lembra das palavras de Madame Mollo... “Você morrerá esfaqueado, em um assalto!”
Joham apenas se lembra das palavras de Madame Mollo... “O senhor morrerá afogado em seu próprio vômito”
Nesse momento Fabrício se lembra apenas das palavras de Madame Mollo... “Morrerá em uma queda, cairá de algum lugar bem alto!”
Agora vem a mente de George as palavras de Madame Mollo... “O senhor morrerá de um infarto fuminante!”


Á beira de uma estrada qualquer, em um canto qualquer do país está Madame Mollo, estirada em seu sofá, ouvindo o seu rádio á pilhas e fumando sua maconha. No rádio; em um desses programas cheios de terrorismo, ouve-se a notícia de uma triste tentativa de suicídio de um senhor de sessenta e sete anos, que não morreu mas ficou tetraplégico, ouve-se falar do jovem que morreu engasgado com uma ervilha, ouve-se falar do ex-militar que aparentemente ateou fogo em seu próprio corpo, ouve-se falar do homem atropelado por um caminhão de lixo, ouve-se falar do desespero humano, da falta de fé, de convicção, do medo da morte. Madame Mollo não dá bola, ela continua a fumar sua maconha.

"Certa vez ouvi falar que foi feita uma pesquisa na qual era perguntado para as pessoas se gostariam de saber o dia de sua morte, segundo a pesquisa 96% dos entrevistados disse que não. Eu também não gostaria de saber. Não gostaria de ter sabido."

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