domingo, 23 de agosto de 2009

Um fio de lã

“Ás vezes morro de medo de te perder”, isso é o que gostaríamos de dizer, mas o que geralmente dizemos é “Nada”. Lembranças metafísicas são as únicas coisas que nos restam antes de dormir. Por que será que nunca nos lembramos do ultimo pensamento que temos antes de apagar? Só nos lembramos de como a noite será longa se não dormirmos. Hoje não conseguiremos dormir. Nosso quarto está escuro e vazio como o espaço sideral, nossa mente está tão mórbida e melancólica quanto a de Brás Cubas, nosso coração bate ao ritmo do tango, um último tango em Paris. Nós estamos inspirados, porém sem idéias, por isso essa será uma obra ao acaso.
Os cabelos por entre nossos dedos são macios e finos, curtos, aveludados, nos remetem as nuvens que observávamos na infância, aquelas nas quais víamos animais e objetos. Nosso coração está saltitante, bate numa ferossidade insana, o sangue circula quente por todo o nosso corpo. Dizem que poemas são os pequenos fragmentos de idéias que conseguimos extrair no nosso consciente, o nosso consciente este sim é a verdadeira poesia. Poesia, o que é isso? É tão abstrato! Como alguns conseguiram convencioná-la de forma tão cientifica? Romantismo, bobeira. Não existe escola que possa ensinar isso, não existe. Nossos cabelos são macios e finos, curtos, aveludados.
Agora nos lembramos de uma tarde de verão; estávamos sentados com elas, olhávamos em seus olhos e dizíamos “Quem de nós será o mais louco?”, elas indagavam “Você”, então nós não podíamos nos conter, tínhamos que arrotar todas as nossas bacabas filosóficas, “Temos o melhor relacionamento do mundo, sabia? Nos amamos, nos odiamos. Nos divertimos, nos aborrecemos. Repentinamente queremos nos encontrar, então não queremos nos ver nunca mais. Com certeza esse é o melhor relacionamento do mundo. Eu nunca preciso te ligar, você nunca vem a minha casa. Eu detesto telefonemas, você detesta meus abraços. As vezes te odeio por quase um segundo, depois tudo volta ao normal. Basta um sorriso teu”, então elas respondem “É”. Nós nunca esqueceríamos esse dia se ele realmente houvesse acontecido.
A noite vai calma na nossa casa, nossa vovó repousa em seu quarto, nosso visitante acaba de chegar. Pensamos em preparar algo para comer, mas não estamos com fome. Lá fora podemos ouvir o som do chuveiro jorrando. Estamos de frente para a nossa máquina de escrever multifacetal de ultima tecnologia. As palavras vão fluindo por nossos dedos como descargas tempestuosas. Nossa mente se esvazia. Toda vez que olhamos no relógio nos lembramos delas. Elas.
Certa vez um grande amigo nos disse que essa coisa do “Eu” não existe, que somos vários em um ao mesmo tempo, e demonstramos isso nos diferentes ambientes que visitamos. Poderíamos concluir por tanto que “Eu na verdade somos nós”. Certa vez uma garota muito inteligente que conhecemos nos disse “Você foi uma virgula, não passou de uma virgula, apenas uma virgula”. Poderíamos concluir que não somos apenas uma virgula, mas varias, afinal essa coisa do “Eu” não existe, e se somos varias virgulas, somos nós quem ditamos a ordem dos ocorridos, os intervalos, conclusões, conciliações e eticétera e tal. Somos mais do que palavras, sem nós o resto do texto seria desanexo e incompreensível. Mas isso tudo não passa de mais uma de nossas viagens. Umas bobeiras que gostamos de compartilhar.
Ás vezes as palavras não tem sentido. Ás vezes se repeti-las algumas vezes perdem todo o sentido. Ás vezes é necessário lê-las mais de três vezes para absorver seus reais significados. Ás vezes são somente palavras. Ás vezes são a alma de alguém. Mas com certeza nunca são escritas em branco.
Nos levantamos, vamos ao toilette, nos olhamos no espelho. Vemos o quanto estamos velhos, tão precoces, tão novos. Vemos as marcas de expressão afixadas com força abaixo dos nossos olhos e em nossas bochechas. Os cabelos já parecem mais ralos hoje do que estavam ontem. O olhar, o olhar nem reconhecemos mais. A barriga cresceu. Os peitos estão mais peludos. O pescoço dói; como sempre. Temos algumas cicatrizes novas. Nossa barba, nossa barba é a mesma. Pouco abaixo de nosso queixo podemos ver um reflexo erupto de nossa alma, um fio de barba branco, o único fio de barba branco que temos, aliás, o único pelo branco que temos em todo o corpo, e ele é tão branco e fascinante, tão branco quanto um fio de lã.