domingo, 8 de novembro de 2009

Lar doce lar!

Aurélio e Júlia eram um casal simples, como outro qualquer. Jovens, inesperientes, marinheiros de primeira viagem. Ainda com os estudos por acabar. Família distante. Eram um casal pouco ousado e ambicioso. Não dispunham de grande saldo junto ao banco. Cada qual com seu simples emprego. Aurélio era o tipo sóbrio, roupas com pouco brilho, sorriso sem notoriedade, presença quase que desapercebida. Aquele tipo de lobo em pele de cordeiro, pois longe dos olhares de Júlia enrrabichava o olhos em outras pernas, sem falar da clássica fugida para cerveja com os amigos na quinta. Júlia, o tipo sorridente-educada-séria, sempre foi a gerente do lar, tinha conhecimento de cada centavo que entrava ou saía de suas contas no banco e para qual fim eram utilizados.

O último domingo do mês era o dia em que o casal sentava para fazer um balanço das suas finanças, Júlia como sempre a par de cada detalhe, calculava e recalculava cada tostão. Não que Júlia fossa algum tipo de carrasco ou ditador, não, ela era organizada, e acreditava que a prosperidade era sinônimo de uma boa economia. Júlia começou a tirar papeis e mais papeis de sua “pasta de contas”, começou a narrar os gastos, ganhos, poupos, e eticétera e tal. Aurélio como sempre, totalmente alheio aos numerais, afinal tinha plena confiança na esposa, seria fácil para Júlia passar-lhe a perna caso quisesse. Foi então que Júlia começou a falar “Aurélio, teremos que fazer alguns cortes, por um certo tempo, surgiram alguns gastos inesperados...", então começou a dizer que teriam que cortar isso, aquilo, aquilo outro, e mais, e mais e mais. Aurélio não entendera. Mas como assim não comeremos mais requeijão cremoso? Como assim comprar um sabonete mais em conta? Lan house? Cortar o talefone? Cota de cervejas? Atordoado lançou “Mas o que diabos houve?”. Júlia com um olhar sério e um sorriso de garçonete disse “Aurélio, eu estou grávida”.

A alegria do casal foi tanta nas três primeiras semanas que já nem ligavam pros cortes que teriam que fazer. Aurélio abandonara a cerveja, Internet e requeijão cremoso, nem se importava mais com a marca do sabonete. Júlia já media a barriga a cada cinco minutos e ficava repetindo “Veja Aurélio, acho que minha barriga está um centímetro maior”. A felicidade contagiava a casa, os amigos, a família, o emprego e todos os demais locais que freqüentavam.

Mas nem toda alegria é sinônimo de felicidade. As contas começaram a chegar. Pilhas e mais pilhas de números. Consultas obstétricas não são nada baratas. E como já foi dito: Não dispunham de grande saldo junto ao banco. Mais cortes. Aurélio começou a engraxar os sapatos ele mesmo. Júlia começou a não assistir mais tv, nem a comer aquele lanchinho depois do expediente com as amigas. Aurélio passou a almoçar no serviço mesmo, para economizar gasolina, já levava uma marmita com o almoço de casa. Júlia começou a cozinhar apenas uma vez ao dia para economizar gás. E mesmo com tantos cortes parecia que o dinheiro não dava, as dívidas só cresciam, se acumulavam. O desespero começou a tomar conta do jovem casal, afinal, nunca haviam passado por situação similar. Jamais haviam se sentido tão impotentes diante da vida. Júlia estava na décima semana de gestação.

Não tardou para que começassem as brigas. Aurélio dizia que Júlia devia ter tomado mais cuidado, tomado os anticoncepcionais, que eles não estavam estruturalmente preparados para a chegada de uma criança. Júlia ficava irada a ponto de ter trocado a fechadura da porta três vezes, obrigando Aurélio a dormir no corredor do prédio onde moravam. Aurélio por sua vez voltou a beber, escondido é claro, e até a fumar. Júlia começou a ficar mais paranóica e agressiva, tudo era motivo para quebra-pau.
Em uma tarde, enquanto assistia tv, escondida de Aurélio; pois vivia jogando na cara dele como ela conseguia se abster de algumas coisas enquanto ele só ficava choramingando pelos cantos, viu em um programa de tv, um desses sensacionalistas, que haveria um sorteio, no qual a família vencedora ganharia um prêmio em dinheiro, aliás um bom prêmio, sem falar na reforma da casa e do carro novo na garagem. Júlia não pensou nem sequer uma vez pôs-se a escrever cartas e mais cartas para o tal programa. Pegou um dinheirinho que ela já algum tempo escondia embaixo da mesa da cozinha, para caso de emergência, e enviou uma centena de cartas.

As bolas de boliche estavam lançada, Júlia cruzava os dedos por um strike, todos os dias ficava em frente a tv aguardando o resultado do sorteio. Até que emfim o dia chegou, as assistentes de palco gostosas jogaram as cartas para cima, o apresentador bestalhão fez uma ceninha, pegou a carta, a abriu vagarosamente, puxou para fora do envelope o conteúdo e leu o nome do grande vencedor “Júlia Ueno Pedrosa, do jardim Paulista, São Paulo capital!”. A emoção da vitória atingiu Júlia como um soco do Hollyfield . Ao acordar deparou-se com o teto branco da emergência do hospital, muitos fuzuê, uma andação de gente, e Aurélio parado olhando para ele com cara de bobo.

Tudo ocorreu muito rápido, a produção do programa entrou em contato com Júlia, foram até sua casa, gravaram o programa, ensaiaram o script com o casal, reformaram o apartamento, deram o carro, a grana. E tudo então parecia no lugar, no lugar que deveria estar. Júlia estava na décima quinta semana de gestação. O dinheiro serviu para quitar as contas do casal e ainda sobrou. Sobrou o bastante para alguns luxos. Algumas festas com os amigos. Um curto final de semana em Guarujá. E alguns jantares em restaurantes bem caros. Voltaram a comer requeijão cremoso e a usar sabonetes carérrimos. Tinham novamente Internet. Esbanjavam ao assistir tv e usar toda sorte de aparelhos eletro-eletrônicos. Aurélio podia sair com os amigos para beber sua cerveja, não só nas quintas-feiras, como antes, mas agora duas ou três vezes por semana. Almoçavam onde queriam, cozinhavam o quanto queriam, agora além de tudo que recuperaram, tinham também tv a cabo e até uma lavadeira. Tinham a sensação de ter encontrado ouro nos sapatos, ou petróleo dentro da geladeira. Agora a vida estava como devia estar. O casal não mais brigava, não tinham motivos, tudo era um verdadeiro mar de rosas.

Mas como dizia o poeta, Alberto salgado, nesse tal mar de rosas também há espinhos, espinhos de montão. Certo sábado a noite, quando Aurélio e Júlia jantavam, em um desses restaurantes com vinícola refinada, degustavam suas maravilhosas taças de vinho e conversavam sobre o pentelhozinho que estava por vir, o garçom se aproximou educadamente de Aurélio e disse “Senhor o seu cartão está sendo recusado”, Aurélio olhou para Júlia e indagou “Júlia...?”, Júlia deu de ombros com cara de desentendida. Aurélio não pôde compreender. Ainda tinha algum dinheiro vivo no bolso e pagou a conta com o mesmo. Na tarde desse mesmo dia Aurélio havia comprado um colar de ouro e pedras preciosas com o qual presenteara Júlia, mas sabia que mesmo com tal gasto ainda havia restado um certo dinheiro na conta conjunta do casal. Conta conjunta, essas palavras soaram como um sino na cabeça de Aurélio, que insistiu “Júlia...?”. Júlia avermelhou-se, parecia um pimentão, ficou cabisbaixa e confessou. Sim, havia sido ela, dizia q não pudera resistir, que aquela bolsa de couro de crocodilo a seduzira, que estava uma pechincha, disse que os sapatos combinavam com tudo e que ela faria jus ao preço pago. O casal discutiu pela primeira vez em meses, o caminho de volta foi comprido e nervoso.

Mas assim como uma avalanche pode começar a partir de uma pequena bola de neve, o caos financeiro que abalou a casamento de Aurélio e Júlia também começou ai, com essa bolsa e par de sapatos de couro de crocodilo. Não suficiente que o dinheiro acabasse, Júlia havia pedido demissão uma semana antes do ocorrido, afinal estavam mesmo “bem de vida”. As contas começaram pouco a pouco a se amontoarem sobre o criado mudo do quarto. De novo estavam no vermelho. De novo se foi o requeijão cremoso, a Internet, as cervejas,sabonetes caros, o direito de cozinhar a hora que quisessem, a ainda mais, foi-se também a tv a cabo, a lavadeira, os restaurantes, as festinhas de sábado e tudo, tudo mesmo. Chegaram a um caos, pois as despesas da riqueza eram ainda maiores do que as da pobreza. Sobravam faturas, contas e parcelas aos montes para serem pagas. Novamente o desespero se instalara no casal. Júlia não conseguiria um emprego naquele estado, já estava na décima oitava semana de gravidez. Aurélio de forma alguma iria conseguir algum tipo de aumento de salário e a idéia de um empréstimo o deixava com medo. Foi então que Júlia teve uma idéia, pensou em talvez entrar em outra promoção, talvez ganhassem, afinal eram “pessoas de sorte”. Então começaram a escrever dezenas de centenas de cartas, mas dana, nenhum resultado, obtiveram apenas mais gastos, agora com correios. Júlia teve cara de pau de ligar na produção do programa que os premiara de inicio com um papo mole de piedade e blá blá blá, mas não caíram na sua conversa e logo desligaram na sua cara, ela ainda retornou outras vezes, mas a produção proibiu a telefonista de passar qualquer outra ligação que viesse da mesma da parte de Júlia. Júlia obrigou Aurélio a se humilhar ainda uma vez, tentando ludibriar os produtores, mas o resultado não foi diferente.

O meses foram se passando e as coisas começaram a apertar, tiveram de fazer inúmeros cortes no orçamento. Agora sobreviviam apenas do salário de Aurélio. A tensão crescia dia a dia, as discussões se tornavam cada vez mais calorosas, bate bocas, brigas em alto tom, tom tão alto que foi chamado a polícia umas duas vezes ainda para conter o casal. As contendas chegaram ao ponto de um arremessar qualquer coisa que visse pela frente contra o outro. Nisso Júlia já estava na vigésima nona semana de gravidez.

As coisas chegaram ao ponto de Aurélio ter de vender o carro que ganhara no programa para quitar algumas dívidas com despesas médicas e outras coisas mais. Agora estavam na lama. O dinheiro não dava. Começaram a vender os móveis, sofá, geladeira e demais coisas que haviam ganhado no tal programa. Mas a pindaíba não findava, e não findaria enquanto Júlia não pudesse voltar a trabalhar. Após o nascimento do pequeno pentelho ainda haveria de se passar pelo menos mais seis meses para isso.

Aurélio e Júlia então decidiram, forçadamente, a tomar uma atitude drástica, decidiram que seria melhor Júlia ir morar com os pais no interior até ter o bebê, alugariam seu apartamento para um terceiro e Aurélio passaria a morar numa quitinete no subúrbio. E assim foi feito. Isso já na trigésima primeira semana de gestação.

Júlia e Aurélia ficaram cerca de um mês sem se ver. Falaram apenas uma vez ao telefone. A despedida não foi muito bonita, apenas um beijo seco e um até logo. Júlia triste, na casa dos pais, permanecia cabisbaixa, se sentia derrotada, envergonhada, perdera tudo e agora jazia na mesma cidadezinha de onde fugira anos atrás. Aurélio vivia bastante largado, comia pouco, ia para o trabalho de ônibus, pois também teve de vender o seu outro carro. Mas de certo agora não saia mais apenas nas quintas para beber com os amigos, pois passou a sair todos os dias, de segunda a segunda. Logicamente teve de trocar a cerveja pelos destilados e fora obrigado a fumar apenas cigarros ganhados nos botecos. A falência se acometera a vida de Aurélio e Júlia. Não tinham mais seu apartamento, nem seus carros, nem dinheiro, nem sequer um ao outro, nada.

Foi num madrugada de terça-feira que o celular de Aurélio tocou, como sempre relutou em atender por não conhecer o número e achar que se tratava de cobrança. Mas por fim cedendo a curiosidade recebeu a tal ligação. Sorte a sua, pois na linha uma voz lhe disse “Aurélio? Aurélio é você? Aurélio, aqui é o Bosco, Aurélio parabéns agora você é pai! É um lindo menino. Parabéns!”. A noticia deixou Aurélio desbaratinado. Não foi de imediato visitar seu recém-nascido filho. Esperou até sábado, quando fez a barba, as malas e partiu para o interior. Chegando foi sorrateiro e desapercebido até a casa dos seus sogros. Chegou, foi bem recebido. Umas das sobrinhas de Júlia guiou-o ate o quarto onde ela se encontrava com o bebê. Aurélio foi a passos curtos pelos corredor da casa, parou diante da porta deu umas espiada, pois a mesma se encontrava semi-aberta, respirou fundo e adentrou o recinto.

Ao entrar, deparou-se com uma cena inesquecível, Júlia deitada a cama segurava o bebê no colo, sorria alegremente e o ninava. O bebê era cabeludo, de cabelos claros, tinha as faces rosadas, e era bochechudo, mas não de forma exagerada, mas de forma que fizesse qualquer um desejar apertar aquelas bochechas. Aurélio ficou parado por um instante diante da cena, a muito não via Júlia tão linda e tão alegre. Júlia o olhou, sorriu e disse “Então que nome poremos?”. Aurélio sentiu o coração entre as amídalas. Caminhou até o leito, ajoelhou-se próximo a Júlia e o bebê e com voz trêmula disse “Eu te amo”.

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