sábado, 31 de julho de 2010

O último trago.


Quando Margie e eu nos conhecemos ainda éramos bem jovens. Eu com vinte ela com quatorze. Éramos pessoas estranhas e mutuamente interessantes. Nos conhecemos nas férias de inverno, morávamos há cerca de 2.200 quilômetros de distância um do outro. Nos casamos seis anos mais tarde. Não vou contar como foram os primeiros encontros, nem como foi o casamento, a lua de mel, ou mesmo como perdemos a unica chance que tivemos de gerar prole. Vou contar como tudo acabou. Estudei jornalismo, publicidade, fiz mestrado, me tornei escritor, fui músico, lecionei por um certo tempo (quando a grana apertou), me tornei velho. Margie se formou em direito, fez mestrado, fez doutorado, advogou, se tornou juíza; e também envelheceu. Conhecemos metade do mundo juntos, insisti bastante para que conhecesse-mos a outra metade mas ela dizia que não valia a pena. Ela achava aquela outra metade sem graça. Ela se aposentou aos sessenta. Eu sempre fui um vagabundo aposentado. Um dia qualquer a levei ao médico, exames de rotina, coisas que os velhos tem que fazer. Não fora um dia qualquer. Já havia alguns meses que ela apresentava uma tosse estranha, parecida com tosse de cachorro. Talvez fosse alguma alergia, eu disse. Câncer, disse o médico. Câncer de pulmão. Como é possível? Eu disse. Margie nunca fumou! Eu sim, fumo desde meus dezenove, não tenho a saúde perfeita, mas não estou nem perto de ter um câncer. Bem, seja como for, foi. Ela se foi, não passado mais que oito meses. Ela não teve chance. Margie nunca foi o tipo religiosa extremista, mas de vez em quando me convencia a largar a bebedeira e ir a igreja. No início da doença fiquei preocupado, talvez a culpa fosse minha, talvez toda aquela fumaça que baforava tivesse ido para os pulmões dela. Mas tal teoria era fora de hipótese, levando em consideração o fato de eu nunca ter fumado a menos de cinco metros de distância dela. É verdade que eu fumava um maço por dia e passava cerca de oito horas de todos os dias bêbado, mas nunca paguei vexame para ela. Nunca quis ser o tipo de bebum enjoado e cansativo. Respeito, se não fosse por amor, era por respeito. Após o velório ainda passei alguns dias dentro de casa, em choque. Agora eu estava mais sozinho do que jamais estivera antes. Fiquei uns quinze dias sóbrio. Depois de trinta anos sem parar de beber, quinze dias parecem uma eternidade. Eu gostaria de me debulhar em lágrimas, mas eu não pude, não conseguia. Eu gostaria de acreditar que faria tudo diferente, e que isso faria diferença, mas eu não pude, não conseguia. Eu gostaria de entender o 'porque', mas não pude. É o que me dizia a porra do código genético. Nesse momento da minha vida eu me sentia mais um morto-vivo. Você conhece os mortos-vivos pela amargura que trazem na voz e a sede de vingança da vida que trazem no olhar. Perdido no espaço sideral. Ela sempre dizia que eu era muito metafórico. Eu metafórico e ela literal. Eu não tinha muito pra fazer, eu tinha grana suficiente no banco para ficar sentado bebendo o resto da vida, uma puta casa na praia, três carros e uma moto na garagem, mas nenhum ânimo. Nada mais valia a pena, nada. Procurar outra mulher? Eu já não tinha mais idade pra isso. E além do que eu nunca gostei muito de sexo. O melhor parceiro que tive na cama até hoje fui eu mesmo.

Era domingo, acordei antes do sol raiar e tomei sozinho meu chimarrão. Fiquei inquieto com algum sonho que tive, não me lembro sobre o que. Vesti uma boa roupa, entrei no meu fusca azul e fui a igreja. As pessoas estranharam a minha presença, pensavam que depois da morte de Margie jamais teriam o desprazer de me encontrar novamente, mas lá estava eu. Era uma igreja muito bonita, admito. Toda feita em madeira, estilo clássico americano. Esses americanos são mesmo muito cheios de frê-quê-quê. Me sentei na quarta fileira, observei o pastor dar início ao culto. Ele pediu que todos ajoelhassem para uma oração. Eu também me ajoelhei. Nesse momento pensei "O que diabos estou fazendo aqui? Será que estou tão desesperado a ponto de procurar nesse monte de gente vazia algum conforto?". Sempre os achei muito vazios, frígido. São pessoas que passaram pela vida sem usufruir porra nenhuma. Não bebem, não fumam, não fodem, não xingam. Acham a pior coisa do mundo pecar, mas pecam mesmo assim. Vivem em estado constante de auto-flagelação e não percebem. Lutam contra suas próprias naturezas como se lutassem contra o diabo. Não passam de ignorantes que acordam cedo no domingo. Levantei-me no meio da oração, dei as costas para o pastor, e sai corredor a fora, tirei um cigarro do bolso, acendi lá dentro mesmo, vi a cara dos paspalhos me olhando como se eu fosse o próprio zebu e sai. Voltei para casa e dormi até umas três e meia da tarde. Depois fui a um supermercado, comprei uma caixa com doze latas de cerveja e dirigi para a praia. Estendi uma cadeira na areia, abri uma latinha, dei uma golada, estiquei meu velho corpo e acendi outro cigarro. Coloquei-o entre meus dedos, médio e anelar da mão esquerda, e fiquei matutando. Deve ser triste ser um cigarro, sua vida é curta e só serve para satisfazer o vício e alguém. Fiquei vendo ele queimar, filete após filete, até chegar perto do fim, perto do filtro. Então levei-o a boca, e dei uma bela tragada, com bastante força. No cigarro eu busco a boca daquela que não tenho. O último trago num cigarro é sempre o mais forte, venenoso e saboroso. É como um último beijo em uma pessoa amada.

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